veja, adelaide, quanta sem vergonhice

Júlio Emílio
9 min readJan 24, 2022

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De: Júlio (juliopaschoal123@gmail.com) em 24/01/2022

Para: Ivi (ivanova.ivanova@gmail.com) em 24/01/2015

oi amg! tudo bem por aí? na verdade, sei que não, rs. ainda não somos amigos porque tu nem me conhece, mas isso acontecerá em breve. te explico melhor: aqui em 2022, no futuro, a gente consegue enviar mensagens de email retroativas. um babado aí do porto digital, sei lá, não me pergunta muito, não.

resolvi entrar em contato porque tou fazendo esse curso com schneider e ele nos pediu que resenhássemos algum livro com o qual temos intimidade. não sei em que pé estás com tua carreira neste momento em que te escrevo, mas se fui de um livro teu (O Martelo, 2015), isso tem razão de ser — grandes razões, na verdade.

para não dizer que tou mentindo, e tu saber que, de fato, eu te conheço do futuro, vou te dizer algo que só tu diria. quando te agradeci por me enviares o teu livro em pdf com “brigado amg t amo”, tu prontamente respondeu “ama nada, vc só quer me comer”. reconheces-te nesta fala, garota de berlim? porque eu sim… (a qual foi respondida por mim com “eu quero dar pra você, é diferente”).

na ficção, é sempre sugerido que qualquer interferência no passado é capaz de alterar profundamente os eventos do futuro. como não há nada que eu desejasse mais do que isso, não vou te blindar de spoilers do que se sucedeu com the hammer (sim, na língua inglesa também, publicado 4 anos depois. gostasse?).

“não pq o filme efeito borboleta…”

o martelo chegou forte a mim, mas já não lembro exatamente como, se foi pelas caróis naquela festa noturna na praia (“quem é essa doida declamando poema no microfone em plena boa viagem às 00h?”, pensei), por marcela ou por pedro, mas chegou.

em recife, os martelos (versão portuguesa, de 2015, e brasileira, de 2017) chegaram numa época em que a cidade passava por um momento significativo na luta pelo direito à cidadania, como foi a experiência do ocupe estelita. vai ver por isso termos nos conhecido em uma festa no meio de uma praia urbana como bvg, tão tarde da noite. também era tempo da consolidação do que quer que sejam as “pautas identitárias”, mas, mormente de um golpe parlamentar contra nossa presidenta (você acredita?), tão simbólico de uma série de eventos sucessivos que abalaram de forma profunda todas as conquistas dos movimentos sociais dos últimos anos de PT. todas as conquistas.

na shark attack praiana em que nos conhecemos. pedro e kate aguardavam os drinks (02/04/2016).

seu livro, ivi, tem um timing muito oportuno para tudo o que vivenciamos naquele momento. as fronteiras do pessoal e do público nunca restaram tão borradas, o linguajar jurídico nunca esteve tão presente no dia a dia e as mulheres, LGBTIs, PCDs, pessoas pretas e indígenas nunca estiveram, ao mesmo tempo, tão na mira e tão nos holofotes.

por óbvio, precisei compartilhar minha obsessão pelo livro com todo mundo: logo apresentei a manu, de quem eu era monitor na cadeira de processo penal, a nandoca e ao grupo asa branca de criminologia — pessoas imbricadas no esforço epistemológico de ligar uma criminologia de raiz marxista às questões de hoje, como os feminismos. um movimento bastante comum em vários campos do saber.

apresentei ao grupo porque, de imediato, havia uma conexão “dogmática” (sempre que nos referimos ao direito duro, à letra da lei, usamos essa expressão) com os assuntos por ele pesquisados.

digo isso já que, através d’O Martelo, conseguimos entender qual é o trajeto percorrido ao se apurar o que chamamos em direito penal de um fato típico. prestar b.o. para instauração de inquérito, ser ouvida por um escrivão, ser conduzida ao IML, ser ouvida por uma delegada, a chegada ao tribunal com a oitiva de testemunhas, o proferimento de sentença… etapas que foram respectivamente retratadas em seus poemas o gato, a porca, o urubu, os testículos e a sentença (ainda ecoa em mim que “se a justiça é cega, só o xampu é neutro (…) se a justiça é cega, só a topeira é sábia”).

mas não só isso: o livro também encena o próprio processo de transformar um fato da vida em uma categoria jurídica — se não há nada mais vazio que esta, é porque ela é constituída por inúmeros rituais, textos, palavras narradas, depoimentos em papel e, nos casos de crimes contra a vida, performances dignas de kikitos, até que, finalmente, adentrem o “mundo do direito”. nada menos espontâneo ou natural.

em advogada americana, tatá werneck imita os trejeitos dos juristas diante da colonização dos fatos da vida pelo direito. nota 10 na coluna patrícia kogut.

um processo, em outras palavras, por demasiado subjetivo, bastante atravessado pelas nossas próprias percepções de senso comum sobre “o que é uma vítima? e quem o pode sê-la?”, “o que é uma mulher de verdade?”, “quem tem cara de criminoso?” e assim por diante… questões que, bem verdade, no livro, estão muito bem delineadas em “a porca”:

a escrivã é uma pessoa

e está curiosa como são

curiosas as pessoas

pergunta-me por que bebi

tanto não respondi mas sei

que a gente bebe pra morrer

sem ter que morrer muito

pergunta-me por que não

gritei já que não estava

amordaçada não respondi mas sei

que já se nasce com a mordaça

(…)

mas também em “os testículos”:

(…)

as testemunhas não são

traças não viram nada como

viram as traças mas defendem

com histeria a inocência do

príncipe usando-me a mim

como medida como podem

ser chamadas de testemunhas

testemunhas que não viram nada

(…)

todas essas questões acabam por fazer coro ao que tantas pesquisas acadêmicas vêm se questionando mundialmente: o que um sistema de justiça criminal (sjc), configurado apenas para punir e gerir uma população de cor e classe específicas, tem de bom a nos oferecer?

pergunta que, por sinal, representa uma das reflexões mais recentes dos abolicionistas penais. ainda conseguimos esticar o sjc a ponto de ele se tornar alguma outra coisa, ou abandonamos tudo porque esse sistema é o que é? que disputas dogmáticas ainda são possíveis considerando estas “regras do jogo”? quais remendos jurídicos conseguimos fazer, porque, afinal, desencarcerar paliativa e inexpressivamente ainda é desencarcerar? se o sjc é constituído por instituições, e instituições são pessoas, que responsabilidades podem ser exigidas destas? por que meus seios não crescem mais? (perdão, esta última é só minha).

para mim, o martelo deixa explícitas, ivi, as inúmeras ocasiões em que alguém pode sofrer de revitimização pelo estado — assunto debatido tão exaustivamente pela vitimologia, que culmina na busca por outras possibilidades de resolução de conflito, tal qual a justiça restaurativa. aliás, o dia em que você topou debater estas questões conosco lá na faculdade foi, sem dúvidas, um dos melhores dias da minha graduação naquele castelo.

eu, marce, manu, pati, nandoca e tu, antes do ead virar modinha (nem te conto…). era dia 17/04/2017 no salão tobias barreto da faculdade de direito do recife. sabia que era meu aniversário? grandes merda, né.

bom mesmo foi conhecer uma mulher que, em determinado ponto do debate, pediu licença e tomou o microfone para si. baixinha, de cabelo curto, blusa estampada de rosas, óculos de acetato e tatuagem de um budew em seu antebraço. tão logo seduziu toda a plateia com o que chamamos de RETÓRICA, saindo do armário pouco depois: aquele pokémon era rozélia, also known as sua mãe que foi te corujar no sigilo. peraí que caiu um negócio aqui no meu olho. vou postar fotos para ver se me recupero ou choro mais. (se eu tou te contando isso e essa mensagem chegar a tu, então tu já sabia desse plano dela o tempo todo??? confuso aqui 🤔)

rozélia em sua troca de looks. vestia uma peruca-plateia mas trocou para algo mais lace-mainha depois do reveal.
alguém tinha ido mijar, portanto a cadeira vaga na frente. mas tava lotado, eu fui, eu tava.

agora se tu me permite, uma associação meio cretina com o livro: dia desses vi os dois filmes sobre o caso de suzane von richtofen, interpretada por carla diaz (aquela do inshalá). em cada um dos filmes, a história cujo desfecho já sabemos é apresentada de forma fiel ao depoimento de suzane, no primeiro filme, e ao depoimento de daniel cravinhos, no outro. histórias que, se levadas a sério, possuem versões bastante conflitantes entre si. algo como “ou suzane era um anjo corrompido, portanto influenciada pelo boy, portanto inocente ou suzane era o capeta, demônio da tazmânia, portanto influenciadora dele, culpada”.

eu, particularmente, fã de todas as atuações toscas (IT’S CAMP!!!), pensei: não tem a menor condição de só uma dessas histórias ser inteiramente verdade. mas veja, aos olhos do tribunal, só importam mesmo as respostas binárias, os arquétipos de personalidade, os tipos ideais de vítima, algoz, criminoso. simplesmente não há espaço para nuances de personalidade ou fuga de estereótipos. nada mais representativo da frágil e masculenta verdade jurídica, não? gosto que esses filmes me fazem pensar isso.

essa binaridade, sabemos, encontra fundamento na racionalidade moderna e é parte de um projeto de assujeitamento e hierarquização (obrigado por lembrar disso, fabi!) de outras racionalidades e saberes. nesse ponto, vale lembrar da justiça restaurativa como uma forma de resgatar uma racionalidade indígena e negra — mas também sem esquecer que a JR pode, potencialmente, servir aos interesses de sempre…

em teu livro, senti o exato oposto: entre vítima e culpada tem, hmmm… tipo… literalmente todo mundo. tem eu, tem você, tem a torcida do santa cruz. sofrer, mas também desejar, perverter, xingar, lamber, mesmo que grandes injustiças contra nós tenham sido cometidas. mesmo que estejamos mais para maria madalena do que maria mãe de jesus.

mas conseguirá um dia o direito digerir tudo isso e, de tabela, proteger a gente? eu espero que sim, sei de inúmeros esforços nesse sentido. mas ainda tenho muito medo. porque se uma verdade qualquer já é sempre uma ficção, então a verdade jurídica é uma fanfic B da saga bruxa onilda.

bom, meus créditos tão acabando (mentira), mas queria finalizar dando (OE) azo a um poema teu que, já que fala de uma espécie de premonição, me deixa todo embaralhado nessa nossa conversa intertemporal. queria fazer uma reflexão muito sagaz a respeito, só que minhas pilhas acabaram. (quero escrever um poema tardio / que se confunda inteiro / que seja contradito no futuro (…) quero ser desmentida / quando lerem esse poema em sabe-se-lá-quando e digam olha que maluca / escrevendo onde estavam os poetas / e as mães-solo / que não se organizaram antes em sindicatos? e digam / veja adelaide / quantos conselhos coletivos e / jardins comunitários / eu quero passar essa vergonha).

eu não sei como, mas se ainda persiste a esperança de que a gente possa passar essa vergonha juntos foi porque ouvi o seguinte em certa performance da flip:

(…)

de que adianta a minha insônia e meu jejum e esse

poema se na papua nova guiné não iriam entendê-lo

e mesmo a compreensão dele não salvaria a vida

da mulher e mesmo no brasil onde se pode entendê-lo já

se sabe que poemas tal qual leis não mudam nada tudo

sobre isso já foi legislado e dito em todas as línguas

também em português mas meu deus

de que adiantaria meu silêncio?

de quem estaria meu silêncio a serviço?

quando ficar pronta a resenha, eu te mando. a gente vai se falando. desculpa qualquer coisa, mas também… já tentasse ser gostosa que nem eu? é foda. ri das minhas piadas quando tu me conhecer, por favor, eu vou te adorar — e NÃO É SÓ porque eu quero dar pra você, me respeite.

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Júlio Emílio

mestre em direito pela ufrj / cofundador do @saquinhodelixo