sonhe, bicha, sonhe

Júlio Emílio
6 min readJul 10, 2021

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frame do filme novo de sailor moon, no qual chibi moon para de desejar sexualmente o pai a partir do momento em que tem sonhos eróticos com o cavalo dele. pequenos fragmentos da tradicional realeza lunar.

quando reduzo bolsas, corto sonhos” disse o reitor da UFRPE, marcelo carneiro leão.

no mínimo, é de bom tom — para não dizer que é um direito básico — qualquer acompanhamento terapêutico no brasil prevaricado e adoecido por biroliro. só que, de minha parte, já não aguento mais trazer um mesmo assunto pro meu improvisado divã (também conhecido como cama ou sofá quando, ocasionalmente, meu telefone tem bateria): os pesadelos com o colégio.

dia desses vi no twitter que não estou só, muito pelo contrário. muitíssimos são os relatos com a escola. o mais interessante de tudo é que são histórias bem semelhantes entre si:

imagens de dor and suffering

como quem não quer nada, resolvi dialogar com a bolha e joguei no stories “você sonha com a escola? se sim, com que frequência? como é?” e as respostas foram, quase todas, no mesmo sentido: a escola reúne memórias de um período muito doloroso.

respostas aos meus stories pt. 1

segundo a psicanalista mariana guerra em entrevista exclusiva para a revista “É milho, Emílio?”, esse momento de muito isolamento ou de convívio mais intenso com a família, aliado às perdas e incertezas da pandemia, talvez faça ressoar em muitos algo do desamparo da infância e da adolescência de cada um.

nem toda instituição de ensino cumpre, afinal, o papel que freud acreditava ser o da escola: proporcionar o desejo de viver, além de oferecer apoio e amparo, já que se trata de uma época da vida em que os jovens são compelidos a afrouxar os vínculos com a família ou com a casa dos pais, me disse mariana.

respostas aos meus stories pt. 2

não sou tão letrado assim nas dimensões sociológica, psicanalítica ou astrológica dos sonhos, mas acho que goffman, foucault, freud e o site personare concordariam que: se a escola é um projeto de disciplina que deve ocupar a quase totalidade de nossa infância e adolescência, inúmeras são as memórias construídas nesse período, por conseguinte. as lembranças que perduram, sem dúvidas, são as mais traumáticas.

todos os relatos me fisgaram um pouco, porque tratam de inseguranças, síndrome do impostor (oi), volta do armário (oioi), demandas burocráticas (oioioi), disciplina com horários (oioioioioioioioioi), além do fato de a frequência deste tipo de sonho ter aumentado justo agora.

mas uma das respostas em específico reacendeu memórias muito dolorosas em quem me contava:

inúmeros tabus seriam quebrados a partir da minha poderosa e interseccional análise a respeito do slut-shaming perpetrado por jovens brancos de classe média/classe média alta de recife, que, inspirados por valores individualistas e neoliberais, se valeram de associações silogísticas pejorativas sobre o transporte público para massacrar a reputação de uma jovem livre em fase de experimentação e amadurecimento. mas eu tampouco era tão diferente deles…

ainda no universo onírico, uma iniciativa muito interessante é o projeto desterro, idealizado por fellipe fernandes. no site do projeto, são mapeados (metáfora e geograficamente) os sonhos da pessoas que moram na região metropolitana do recife, durante esta pandemia. parece uma espécie de tentativa cartográfica de situar o nosso inconsciente coletivo. os vídeos são divertidíssimos, porque vc descobre que tem pessoas cujo inconsciente é tão, digamos, questionável quanto o seu.

“ao reunirmos num mapa relatos de sonhos de diversos habitantes de uma mesma cidade criamos uma outra geografia?” consta no site do projeto esta linda frase que ainda vou tatuar no rego.

tenho tido saudades de sonhos menos pretensiosos. sonhos bons, sonhos bobos. sonhos que nem o de gustavo patriota, até ele terminar de nos contar e eu me arrepender de ter desejado isso.

gustavo e seu sonho com kali uchis, a qual trajava uma roupa bastante verossímil para o histórico da cantoura: algo entre roupa de sair e biquíni.

em TeMpOs pAnDêMiCoS, seria ótimo poder ter um daqueles sonhos lúcidos, com menos atravessamentos traumáticos ou memórias dolorosas. de repente, foi justamente isso que levou aos desenvolvedores de animal crossing, a colheita feliz GLS da nintendo, a permitir que os jogadores, além de povoarem e criarem suas próprias ilhas, pudessem visitar as ilhas de outrem a partir do… sono (plus mensalidade da nintendo switch online *wink*). confesso que a ideia de poder receber alguém em sua “casa” sem você precisar estar presente é fascinante. não sobra bagunça, você não faz sala, fica tudo no plano das ideias e o “vamo marcar mesmo” vira obsoleto.

tradução livre: top 5 paraísos fiscais para se visitar no mundo - ilhas cayman e brasil, que ocupa 4 vezes o ranking.

eu, como fã de mundos virtuais sobre os quais eu detenha o completo controle, usufruí da ferramenta, até precisar escolher entre arrumar a minha ilha e a minha própria vida. ilha escolhida, sem pestanejos.

mas, realmente, venho sentindo falta de sonhar simplesmente. sonhar como sinônimo de viagem ou de esperança de vacina, de derrocada de governo, de saúde, de reencontros. se pudesse, sonharia até com aqueles momentos “meu deus, eu devia ter ficado em casa vendo netflix porque eu, mais uma vez, escolhi sair no dia errado e agora vou ter que ir pra mamede simões de novo”.

fato que, nesse momento, estar vivo numa pandemia bolsonarista diz muito mais respeito à sorte de não ser o alvo principal que à competência em gerenciar uma crise sanitária. rejeição de vacinas, desestruturação de todas as instituições públicas (escolas, hospitais, universidades etc.), apagamento de dados essenciais sobre um país, desmatamento recorde e propina em um dos casos mais surreais de corrupção já presenciados. quem vê o brasil de hoje só pode pensar que sonhar é, ao mesmo tempo, um devaneio e ato político por excelência.

bem verdade que escola e universidade são momentos bastante distintos entre si. mas é inevitável pensar que, quem com a escola sonha, sobretudo com tudo o que emperra a vida acadêmica (burocracia, bullying, racismo, machismo, LGBTIfobia, sensação de não-pertencimento), encontra correspondência real com os obstáculos do inconsciente: há cada vez menos investimento em educação (os gastos com o MEC são os menores desde 2010); há cada vez menos bolsas para as pós-graduações; há cada vez menos verba destinada às universidades públicas, muitas das quais decretaram sua falência se o orçamento persistir; há, hoje, um projeto de embrutecimento coletivo, a partir do momento em que se põe ciência como sinônimo de achismo.

em live com gil do vigor, o reitor alfredo gomes sinaliza para a importância da educação e informa que, só neste ano, a UFPE teve um corte de orçamento de R$ 30 milhões. ai brasil.

um país que destina, portanto, os mesmos predicados para os mesmos sujeitos e que nos faz nos perguntar: se somos interpelados por qualquer um destes recortes que seja, como nos imaginamos diferentes desta profecia na escola, na vida ou na profissão escolhida?

em suma, um verdadeiro pesadelo lúcido do qual só é possível sair quando se utiliza o único remédio para verme que também é capaz de atingir vírus: o impeachment (de forma resumida, a associação brasileira de juristas pela democracia (ABJD) reuniu todos os crimes de responsabilidade perpetrados pelo presidente neste post aqui) — se animal crossing, sailor moon ou o projeto desterro me convidam a sonhar, quem sou eu pra dizer não?

(fiz uma playlist temática, depois de pedir indicações de músicas que falassem de sonhos, na esperança de que essa seja uma capacidade da qual nunca se abra mão).

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Júlio Emílio

mestre em direito pela ufrj / cofundador do @saquinhodelixo